Fonte: Canal Energia

 

A indústria automotiva já decidiu: o carro do futuro será movido a baterias. Mas o Brasil ainda precisa tomar a decisão de investir em infraestrutura se não quiser ficar para trás nessa nova ordem mundial

Na casa do empresário Leonardo Celli, em Jaguariúna, interior de São Paulo, tudo é elétrico: o chuveiro, a torneira, a cafeteira, o ar-condicionado e, até mesmo, o carro. Mas ele não se preocupa com a conta de luz, apesar do recente aumento instituído pelo governo, que vai elevar a tarifa da bandeira vermelha, em novembro, de R$ 3,50 para R$ 5. A residência de Celli, construída por ele mesmo, conta com um sistema fotovoltaico de geração de energia. Quando não está utilizando a rede elétrica, ele joga de volta ao sistema da CPFL, responsável pela distribuição em sua cidade, a eletricidade produzida pelos painéis instalados no telhado. Na média, ele pelo menos empata em consumo e geração, como atestou a reportagem da DINHEIRO ao visitar o local. O empresário, dono de uma empresa de marketing, é um dos fundadores da Associação Brasileira dos Proprietários de Veículos Elétricos Inovadores (Abravei), um grupo de pioneiros adeptos de uma tendência mundial, mas que ainda engatinha no País: a do carro movido a eletricidade.

“Somos cerca de 30 pessoas, a maioria proprietários de um BMW i3”, afirma Celli. O carro da montadora alemã é o único totalmente elétrico vendido no Brasil. Sua autonomia é de 120 quilômetros na bateria. Há um sistema auxiliar que aumenta o alcance do carro graças a um gerador a gasolina, que pode recarregar a bateria em caso de necessidade. Mas, na prática, Celli acaba rodando de graça, já que carrega o carro em casa, onde o sol é a principal fonte de geração. Esse é um modelo facilmente replicável no País e que poderia servir de padrão para o futuro da indústria automotiva brasileira. Só que pouco tem sido feito para incentivá-lo.

A associação tem como objetivo, justamente, chamar atenção para a necessidade de se criar a infraestrutura necessária ao carro elétrico no País. “Existe a demanda”, diz Celli. Hoje, porém, quem quiser comprar um veículo que não use motor a combustão não vai conseguir, já que o i3 está esgotado. Os pontos de recarga também são escassos: existem pouco mais de 70 no País, a maioria da região Sudeste, instalados pela própria BMW. Celli relata, também, que praticamente não há rede de assistência técnica. “É preciso resiliência para ter um carro elétrico no Brasil”, diz ele.

Essas dificuldades contrastam com o potencial brasileiro. O País tem todos os atributos para facilitar a troca da matriz energética. A energia é limpa, há abundância de sol, ventos e uma das maiores bacias hidrográficas do mundo. A disseminação do veículo elétrico pelas cidades brasileiras, contudo, deverá acontecer num momento posterior ao dos países desenvolvidos. “Estamos começando a falar disso agora”, afirma Rafael Cagnin, economista do Instituto de Estudos para o Desenvolvimento Industrial (Iedi). “Essa mudança no setor automotivo faz parte de uma transformação maior da indústria, que já é discutida desde 2010, mas ainda engatinha no Brasil.” Ele se refere à chamada indústria 4.0.

Globalmente as grandes montadoras já se preparam para a mudança, que acontecerá com ou sem o Brasil. Todas, sem exceção, estabeleceram cronogramas para a introdução do carro elétrico em seus portfólios. Algumas mais rapidamente, como a sueca Volvo. A partir de 2019, sairão de suas linhas de montagens apenas carros elétricos ou híbridos, que misturam as duas tecnologias num mesmo sistema. “Essa é uma escolha que a indústria já fez”, afirma Luiz Rezende, presidente da montadora no País. “O Brasil terá de acompanhar, ou ficará atrasado em relação ao resto do mundo.” A estratégia global da empresa valerá para o mercado nacional, ou seja, em pouco mais de um ano, quem quiser comprar um carro da marca terá de escolher entre os modelos elétricos – hoje, ela vende por aqui apenas o híbrido XC90, mas Rezende afirma que o portfólio à bateria irá aumentar gradativamente.

A Volvo não deve ficar sozinha. A GM, por exemplo, pretende lançar 20 modelos elétricos, globalmente, até 2023. No mesmo período, a Ford espera colocar à venda 13 modelos a bateria. Renault, Nissan e Mitsubishi, que pertencem ao mesmo grupo, estão desenvolvendo 12 modelos, a serem lançados até 2022. Já a Toyota, dona do Prius, o carro elétrico mais vendido no mundo (veja quadro ao final da reportagem), anunciou investimentos de US$ 1,6 bilhão em uma fábrica nos Estados Unidos, só para veículos sem combustão. Volkswagen, Mercedes e PSA também anunciaram que vão substituir os motores de seus carros. É praticamente certo que, em cinco anos, o portfólio dessas empresas nos mercados desenvolvidos seja dominado por veículos que podem ser ligados na tomada.

No Brasil, por sua vez, o ponto nevrálgico dessa questão está no impulso que o governo está disposto a dar para a mudança. A demanda das montadoras é por algum tipo de ajuda para trazer o carro elétrico para cá, não só em termos de infraestrutura, mas também no âmbito fiscal – ainda que, no marketing, elas se mostrem totalmente a favor de abandonar os combustíveis fósseis. Acontece que o setor encontra-se em meio a uma transição de políticas industriais. O Inovar-Auto, plano definido no governo Dilma Rousseff e que foi condenado pela Organização Mundial do Comércio (OMC) por dificultar a importação de veículos, sairá de cena. Em seu lugar surgirá o Rota 2030. Até o momento, porém, pouco tem se falado sobre a eletrificação no âmbito da nova política industrial – procurado, o Ministério da Indústria, Comércio Exterior e Serviços não se manifestou.

A expectativa é de que as diretrizes do Rota 2030, ou pelo menos parte delas, sejam determinadas ainda este ano. Governo e montadoras têm se reunido semanalmente para tratar do assunto. Até o momento, os pontos de consenso estão concentrados nas metas de eficiência e segurança automotiva, nos incentivos a investimentos em pesquisa e desenvolvimento e na introdução de um regime simplificado que permita a suspensão de tributos federais, como PIS/Cofins e IPI Importação. Segundo Antonio Megale, presidente da Anfavea, associação que reúne os principais fabricantes de carros do Brasil, há um grande desafio que é saber como o País irá se inserir no mercado eletrificado. “Temos de olhar para o que está sendo feito lá fora”, disse Megale. Se for assim, a lógica é apostar tudo no elétrico.

Afinal, a lista de países que já se comprometeram a proibir a venda dos motores a combustão já passa de uma dezena e inclui alguns dos maiores mercados do mundo, como China, França, Inglaterra e Alemanha. Por outro lado, há certo consenso na indústria sobre a possibilidade de se ter mais de uma matriz energética em lugares diferentes. “O transporte representa 14% de todas as emissões de gases de efeito estufa, principalmente por causa do uso predominante de combustíveis à base de petróleo”, afirma Sergio Marchionne, presidente da FCA, que reúne as marcas Fiat e Chrysler, entre outras. “Contudo, precisamos ser claros: não existe uma única solução e nenhuma fórmula mágica para esse problema.” Nesse sentido, é importante ressaltar o papel do etanol na indústria brasileira. A frota circulante nacional superou 35 milhões de automóveis, no ano passado, segundo dados do Departamento Nacional de Trânsito (Denatran). Quase 60% dela possui motor flex, ou seja, roda tanto no etanol, quanto na gasolina.

Pode haver, ainda, alguma preocupação em relação à capacidade do sistema elétrico de dar conta do aumento da demanda, quando os brasileiros passarem a abastecer seus carros na tomada. Estudos feitos pela Itaipu, estatal que controla a usina binacional, apontam que, se todos os carros em circulação hoje fossem eletrificados, haveria um adicional de consumo de 30%. “Mas esse é um cenário improvável, para não dizer impossível”, afirma Celso Novais, engenheiro da empresa, que mantém um projeto para desenvolver carros elétricos. Na verdade, diz Novais, imaginando que fosse necessário usar usinas termoelétricas para suprir esse aumento de demanda, ainda assim, o consumo de combustíveis fósseis cairia pela metade, se todos os carros fossem movidos a eletricidade.

Segundo Marchionne, para valer a pena forçar a introdução do carro elétrico, a energia produzida teria de ser limpa – algo que, no Brasil, já é uma realidade razoável. Mas há outras questões. “O carro elétrico é, essencialmente, urbano”, diz Rogelio Golfarb, vice-presidente de assuntos corporativos da Ford na América do Sul. Para a montadora, quando se trata de longas distâncias, um pouquinho de combustão ainda se faz necessário. Essa visão é compartilhada por Jean-Phillipe Imparato, presidente mundial da francesa Peugeot. “Mais de uma matriz energética podem coexistir, dependendo do mercado”, afirma o executivo. Já a velocidade de introdução da nova tecnologia vai depender dos incentivos concedidos pelo governo e da infraestrutura local.

O provável é que o Brasil deva participar de uma segunda onda de eletrificação, que virá após a transformação de mercados como o chinês e o europeu. “Talvez seja melhor para o País fazer a migração já com uma tecnologia madura”, afirma Marcos Munhoz, vice-presidente da GM no Brasil. “Podemos pular uma etapa.” O ciclo de investimentos da indústria automotiva também favorece essa visão. Geralmente, ele ocorre em um intervalo de sete anos. Considerando que, nos últimos meses, as principais empresas do setor anunciaram investimentos que superam a marca dos R$ 15 bilhões, nos próximos cinco anos, é admissível que a eletrificação do mercado nacional fique para a série seguinte de investimentos.

O risco que se corre, segundo Rafael Cagnin, do Iedi, é ver a indústria perder ainda mais competitividade, algo que já vem acontecendo desde os anos 1980. “O conceito de indústria 4.0 pressupõe muito mais do que a mudança da matriz energética”, diz o economista. Quando o termo foi cunhado, há sete anos, na Alemanha, ele já agregava uma ideia de política industrial nacional que tinha como objetivo reverter uma tendência de perda de relevância do setor em economias desenvolvidas, principalmente em virtude da massificação da produção chinesa. “Estamos num momento de incerteza crônica. Mudará tudo, desde a fábrica até o produto. Talvez até o conceito de linha de produção desapareça”, diz Cagnin. Mas, há uma certeza: ficar parado, esperando, é o pior negócio.